WALKER, Marli. Coração Madeira. Cuiabá: Carlini & Caniato Editorial, 2020.
Dário Ferreira Sousa Neto
Ilustração: Indy
O leitor que minimamente conheça a vida e a trajetória da poetisa Marli Walker (Bom Jesus do Oeste, SC, 1966), autora dos livros de poemas Pó de serra (2006), Águas de encantação (2009), Apesar do amor (2016) e Jardim de Ossos (2020), ao ler seu primeiro romance, Coração Madeira, publicado em 2020 pela editora Carlini & Caniato Editorial, ficará tentado a identificar esse romance como autobiográfico. Assim como Marli Walker, a personagem identificada como Filha do Meio nasce em Santa Catarina e migra para o Centro-Oeste do Brasil. Ambas compartilham o percurso acadêmico na formação em Letras e a especialização em mestrado e doutorado. Ambas também compartilham a experiência da maternidade com apenas um filho e a “avoternidade” com duas netinhas e um netinho.
Contudo, é importante lembrar da lição de Bakhtin, em Estética da Criação Verbal, ao estabelecer essa distância entre autor e personagem, mesmo quando propositalmente o autor apresente um texto assumidamente autobiográfico. Tentar depreender na escrita o seu próprio valor, conforme afirma o crítico russo, é o mesmo que tentar se levantar pelos cabelos. A alteridade, portanto, torna-se elemento fundamental para colocar em suspensão no romance qualquer possibilidade de autobiografismo. Essa suspensão permite à autora explorar os campos do verossímil para, das matérias-primas de sua experiência ao longo da vida, ficcionalizar a vida da Filha do Meio. Se a autobiografia depende de uma identificação entre autor, narrador e personagem, vê-se no início do romance essa não identificação, uma vez que a narrativa se inicia em terceira pessoa. Porém, a suspeita do leitor não está completamente descartada, já que na dedicatória outra conexão se estabelece: a obra é dedicada à amiga Viviane, musicista já falecida, tal qual a amiga pianista da protagonista.
A narrativa organiza-se em três partes. A primeira, intitulada “Em nome do Pai”, abarca do capítulo um ao quatorze. Iniciando in media res, localiza a personagem central no sertão amazônico em meio a chuvas torrenciais e tendo de acudir uma mulher grávida. O leitor consegue identificar o ambiente e as personagens presentes por meio do estado emocional da Filha do Meio que ainda não está identificada. A escolha narrativa envolve o leitor na tensão do momento da personagem por meio da repetição de palavras – recurso muito presente nessa primeira parte – e na compreensão do ambiente por meio da percepção sensorial da personagem: “O céu desabava. Chovia cachoeira, catarata, dilúvio naquela noite, nas entranhas do sertão, no coração da grande mata. Ouviu seu nome evocado, pronunciado, sussurrado, meio chamado, meio sonho, meio urgência. A luz trêmula do pavio da vela de cera comprimiu suas pupilas. Talvez fosse sonho, pesadelo, cansaço”.
A audição, a visão, o toque da pele são os meios vocabulares pelos quais o leitor consegue se ambientar no espaço da personagem. Esse primeiro parágrafo do romance sintetiza e dá o tom da escolha narrativa pela qual o leitor conhecerá o presente e o passado da Filha do meio.
Já no segundo parágrafo, outro recurso é utilizado para determinar sobretudo essa primeira parte da narrativa: a intercalação entre presente e passado. A voz do “dono da voz” dizendo-lhe da necessidade de a personagem fazer o parto a faz ouvir outra voz, em fração de segundos, da religiosa que ensinara as meninas o ofício do magistério. Esta segunda voz se presentifica para lembrá-la de como uma moça de família formada para o magistério deverá se portar em uma situação como essa.
Ambos os parágrafos, dão a tônica dessa primeira parte: a repetição de palavras que arrasta a narrativa; a compreensão do ambiente por meio dos sentidos da personagem – o que marca todo o capítulo dois na relação entre a Filha do meio e as baratas – e a intercalação entre passado e presente. Essa intercalação não se constrói como um simples recurso de flashbacks que interrompe a narrativa para apresentar a personagem ou localizar o leitor em determinados acontecimentos, mais que isso, o passado é a própria narrativa nessa primeira parte do romance. Isso se evidencia pelos títulos “Do episódio anterior” que nomeiam do capítulo dois até o vinte três, excetuando apenas o primeiro e o último.
A retomada do passado nessa primeira parte do romance que, aos poucos, secundariza o presente, remete o leitor à tradição do romance de formação, o bildungsroman. Em Coração Madeira, o leitor encontra o processo de amadurecimento da personagem central – a Filha do Meio – em confronto com o meio no qual foi criada e outro para o qual foi preparada desde a infância. Semelhante aos bildungsroman, aqui os dois tempos e dois espaços, bem como o deslocamento entre eles, possibilitam o acesso do leitor ao processo de transformação da personagem marcada pela imposição da vontade do outro, a anulação emocional na primeira parte de sua trajetória, a crise interna e externa e, por fim, a mudança que marca a maturidade dessa personagem.
Conforme afirma o narrador no capítulo oito, a normalista do último ano de magistério estava preparada para assumir seu papel como esposa do moço bonito, forte e valente para, como mulher adulta, dar continuidade ao patriarcado no qual ela fora criada. Pela tradição instituída muito antes da moça nascer, não lhe era permitido cursar uma faculdade. A menina deveria seguir os passos da mãe e da avó e tornar-se esposa de um novo “dono do patriarcado” que, após o casamento singelo e simples, a leva para o meio da floresta amazônica entre árvores vivas, árvores mortas e muito pó de serra.
O deslocamento geográfico e, consequentemente, seu afastamento da família e da tradição patriarcal a faz acordar a voz do coração cuja língua “ainda não conhecia, não entedia, não dominava um A nem vírgula que fosse”. Sua vivência naquele outro sertão, labutando ao lado do “dono do patriarcado”, aos poucos, a faz dar ouvidos para aquela voz que lhe falava em língua morta, até que esta lhe diz para buscar seu caderno perdido, momento em que começa a entender a voz do coração. Esse momento de entrega a si mesma marca o término da primeira parte do romance.
A segunda parte com o título “Em nome da mãe” englobando dos capítulos 15 ao 23, leva o leitor ao clímax do romance. Não à toa, o primeiro capítulo dessa parte inicia-se com a voz do “dono do patriarcado” para a esposa: “Você terá que escolher. Ou a universidade ou o casamento”. Essa encruzilhada onde a Filha do Meio é posta não apenas pelo dono da voz, mas por todo o sistema patriarcal no qual fora criada, estabelece a tensão do romance e desperta no leitor a curiosidade sobre o desfecho que a protagonista terá diante desse entrelugar: Será que em nome da família, ela cederá aos caprichos do marido? O leitor atento já sabe a escolha dela pelo spoiler dado no início desta resenha. Mas cabe outra curiosidade: necessariamente ela terá de romper com o sistema patriarcal ou a encruzilhada é apenas um blefe do marido? Escolhendo o caminho do saber formal, como se comportará sua mãe, seu pai, suas irmãs e irmãos? O que sobrará para ela de todo seu passado após escolher seguir a voz de seu coração?
Não cabe aqui tentar responder essas questões para não tirar do leitor o prazer de trilhar por essas encruzilhadas da narrativa. Somente na relação com esse narrador que particulariza o percurso de formação da personagem por meio da junção dos acontecimentos objetivos com a vibração da interioridade da Filha do Meio o leitor encontra não os fatos apenas, mas os motivos e os sentimentos que dão vida e transpiram valores na história da mocinha normativa formada para ocupar o lugar ao lado do dono do patriarcado. O que se percebe é que, nessa segunda parte, as repetições diminuem e a narrativa assume um tempo mais linear sem com isso abandonar a percepção dos acontecimentos por meio da perspectiva dessa personagem principal.
A última parte intitulada “A Filha do Meio”, contendo apenas um único capítulo como uma espécie de síntese de todos os anteriores, torna-se surpreendente pela escolha estilística da autora. A questão da autobiografia volta à cena de novo, mas não para ser respondida. Pelo contrário, atualizar o tema não traz resposta a ele, mas o desloca para novos sentidos. De quem se trata essa história? De uma mulher em específico ou de muitas Filhas do Meio a enfrentarem desafios hercúleos quando resolvem se tornar senhoras de seus próprios destinos. Não é uma narrativa que decepciona, mas que, pelo contrário, convida o leitor à reflexão da situação da mulher em pleno século XXI, ao mesmo tempo que nos faz mergulhar nessas possibilidades de ressignificação da autobiografia e do bildungsroman. Nas palavras da narradora: “Somos imagem e semelhança, estrada e caminho, partida e chegada, passagem e eternidade. Juntas, pulsamos. Seguimos…”.
Para saber mais
BALDAN, Viviane Lazarini; BARBOSA, Everton Almeida (2022). WALKER, Marli. Coração Madeira. Cuiabá: Carlini & Caniato, p. 160. Revista Igarapé, Porto Velho, v. 15, n. 4, p. 269-272. Disponível em: https://periodicos.unir.br/index.php/igarape/article/view/7113. Acesso em: 8 maio 2023.
PINTO, Luiz Renato de Souza (2020). Coração Madeira: nasce um romance. Mega Pop. Disponível em: https://www.megapop.com.br/artigos/id-595614/cora__o_madeira __ nasce_um_romance____luiz_renato_de_souza_pinto. Acesso em: 8 maio 2023.
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