HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Samara Lima
Ilustração: Kleber Sales
A literatura nacional é pródiga em exemplos de narrativas que, a partir de uma multiplicidade de temas, estilos, formas literárias e vozes, almejam representar a realidade e pôr em evidência os problemas da sociedade em que estamos inseridos. É exatamente isso que mostra o romance Dois irmãos, de Milton Hatoum (Manaus, AM, 1952), publicado em 2000, que encerrou o silêncio de 11 anos do autor no cenário literário atual, após sua estreia com a obra Relato de um certo Oriente (1989).
Descendente de libanês muçulmano e mãe brasileira católica, Hatoum é aclamado pela crítica brasileira e do exterior, sendo estudado e traduzido para diversos países, como Estados Unidos, França e Itália. Suas obras foram adaptadas para a tevê e para a linguagem dos quadrinhos, e já recebeu diversos prêmios, como Jabuti e Telecom (Prêmio de Portugal).
O cenário principal de muitas de suas obras é Manaus, cidade na qual o autor passou sua infância e juventude antes de se mudar para Brasília a fim de concluir os estudos e, depois, para São Paulo, com o objetivo de cursar Arquitetura e Urbanismo, na Universidade de São Paulo (USP). É a partir da mistura das experiências vividas nesses lugares que o autor tece suas narrativas. Cabe ressaltar que o espaço físico das cidades recebe muita atenção em seus romances. Percebe-se isso nas descrições estéticas minuciosas dos prédios e na exposição dos nomes das ruas, como também na maneira como a paisagem urbana influencia e integra a personalidade dos personagens.
Dois irmãos conta a história de uma família de imigrantes libaneses que vivem em Manaus e se dedicam ao comércio, ocupando um período que vai do pós-guerra até o fim dos anos 1970. O mote do enredo é a disputa entre os irmãos gêmeos Yaqub e Omar, e sua improvável reconciliação. A narrativa concentra seu foco nos personagens dessa família caracterizada a partir de um jogo de lembranças e esquecimentos evocados pelo narrador – personagem Nael, filho de um dos dois irmãos – e por fragmentos de histórias contadas por Halim, seu suposto avô, e Domingas, mãe de Nael, uma índia órfã que foi comprada da igreja quando era pequena para trabalhar para a família.
Na tentativa de amenizar a disputa entre os rapazes, Yaqub, a mando do pai e contra sua própria vontade, parte para o Líbano, um ano antes da Segunda Guerra Mundial, aos treze anos de idade, e regressa a Manaus cinco anos depois. A história, então, se inicia com a volta de Yaqub para a cidade natal e o reencontro e a convivência entre os gêmeos sob o mesmo teto. Nael nos apresenta, por meio de uma escrita em primeira pessoa, os dramas da família, os conflitos domésticos cada vez maiores entre os irmãos, seus casos amorosos e atos de vingança. Da mesma forma, conhecemos Halim, pai dos gêmeos e marido apaixonado, que falha diversas vezes em tentar conciliar a tensão entre os irmãos e em remediar a predileção de Zana (mãe dos gêmeos) por Omar. Nael observa os acontecimentos atentamente, “de fora e às vezes distante”, pois quer reconhecer em um dos gêmeos a identidade de seu pai e reconstruir um passado desconhecido que o atormenta desde criança.
O retorno de Yaqub é envolto em mistério, uma vez que ele nada comenta sobre sua estada no Líbano. Ao mesmo tempo, ele parece demonstrar um enorme rancor por ter sido enviado à terra de seus antepassados à força. Com o passar do tempo, o jovem se dedica aos estudos e viaja para São Paulo, onde se forma em Engenharia Civil e se casa misteriosamente com uma moça, sem convidar os familiares, apenas comunicando à família a celebração. Já Omar é expulso da escola e opta por seguir um rumo diferente do irmão mais velho, perdendo-se em bebedeiras e noites de escândalos.
Em um primeiro momento, a trama parece tratar apenas de uma família de árabes e da inimizade entre irmãos. Entretanto, uma leitura mais atenta sugere que a história de uma família de imigrantes pode se relacionar com a história de Manaus e, por que não dizer, do próprio país.
Em primeiro lugar, visualiza-se a Manaus afetada pela instabilidade provocada pela guerra, com o racionamento de energia, a dificuldade financeira da família, juntamente com seus moradores lutando para sobreviver. Depois, se está diante da cidade ainda com ar provinciano no contexto do pós-guerra, porém com o sentimento de euforia inflado pelo discurso da aceleração da economia através da industrialização. O comércio da família melhora, mas Halim permanece “atento à ameaça da decadência”. De qualquer maneira, nessa época, “Yaqub e o Brasil inteiro pareciam ter um futuro promissor” e é justamente por esse motivo que o professor do jovem, conhecido como padre Bolislau, o aconselha a partir. Yaqub viajou para a cidade grande em 1950, década marcada pela ideia desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek. É bem verdade que o sonho de progresso logo é desmascarado e se dissolve, quando os cidadãos do norte vivenciam noites de blecaute, enquanto Brasília estava sendo inaugurada. O narrador de Dois irmãos aborda como o desenvolvimento econômico do centro-sul contrasta com a decadência do Norte, deixando sem assistência os marginalizados. A cidade flutuante do romance, que também está presente em Cinzas do Norte, terceiro livro do autor, é erguida à beira dos igarapés, sobre troncos. Ali, “se amontoavam ex-seringueiros”, isto é, os moradores mais pobres. Enquanto Nael e Halim têm uma visão crítica sobre as mudanças ocorridas em Manaus, Yaqub defende seu crescimento a qualquer custo. Essa transformação “modernizadora” aparece espelhada nos negócios da família. A pequena loja que inicialmente era ponto de encontro para conversas entre os amigos de Halim deu espaço para uma empresa lucrativa.
O Golpe Militar de 1964 também aparece como pano de fundo histórico atrelado à vida das personagens. O narrador conta, por exemplo, sobre a ocupação de Manaus, o movimento das tropas, a demolição da cidade flutuante e seu medo de sair às ruas. Da mesma forma, lê-se sobre o fechamento de cinemas e escolas, e a perseguição aos intelectuais. A brutalidade do regime é abordada por meio da morte do personagem Antenor Laval, um professor de francês que busca estimular seus alunos a pensarem e um poeta que escreve sobre suas angústias e ri “dos políticos da província”. Laval é perseguido, humilhado em praça pública, preso e morto.
A violência e a destruição de Manaus em nome do progresso, realçadas pela descrição da violência do período ditatorial, também marcam o início do dilaceramento da família e da casa: o desencanto de Halim pelos familiares e pela cidade e, depois, sua morte; a dificuldade de a loja permanecer aberta; o luto, o delírio de Zana por uma reconciliação dos filhos e sua morte; a morte de Domingas; a fuga de Omar por causa de uma briga com Yaqub; a venda da casa em que vivem para um empresário indiano chamado Rochiram para quitar uma dívida fruto da rivalidade entre os irmãos; e, por último, a destruição dessa mesma casa tão repleta de memórias para a criação de um comércio que negociava produtos do exterior.
É possível perceber, então, que o romance não se reduz à mera disputa entre os irmãos ou à oposição de suas personalidades, mas discute questões relativas à construção da identidade do narrador-personagem, Nael, a partir de sua visão dos fatos, dos processos históricos e sociais relevantes para o Brasil.
Milton Hatoum, assim como tantos outros autores contemporâneos, embaralha as fronteiras entre a ficção e a realidade para promover um olhar crítico sobre nossa história. Ler Dois irmãos, mais de vinte anos depois de sua publicação, é um prazer e deixa um alerta, pois ainda somos assombrados por manifestações antidemocráticas que reivindicam a volta do regime militar e nos colocam diante do desafio de construir um projeto de país no qual a ideia de um futuro promissor esteja de mãos dadas com o destino comum. Ainda que a literatura não derrube governos, como afirmou Hatoum em uma entrevista para a Focus Brasil, ela pode fazer com que tenhamos mais cuidado para evitarmos repetir a História.
Para saber mais
BEAL, Sophia (2017). Espaços movediços e conflitantes na Manaus de Milton Hatoum. Teresa, São Paulo, n. 17, p. 71-86. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ teresa/article/view/114576. Acesso em: 19 fev. 2023.
MAURO, Ana Claudia Jacinto de (2018). O design de livros: análise de capas de Milton Hatoum. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Presbiteriana de Mackenzie, São Paulo.
OLIVEIRA, Maria Rita Berto de (2020). Uma análise do espaço romanesco em Dois irmãos, de Milton Hatoum. Curitiba: CRV.
SOUSA, Germana (2011). Entre o cedro e a seringueira: certos relatos de Milton Hatoum. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 14, p. 23-37. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/8875. Acesso em: 20 fev. 2023.
HATOUM, Milton (2016). Entrevista com Milton Hatoum. [Entrevista concedida a] Julio Pimentel, Pinto, Francine Iegelski e Stefania Chiarelli. Intelligere – Revista de História Intelectual, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 2-10. Disponível em: www.revistas.usp.br/ revistaintelligere/article/download/120279/118467/226876. Acesso em: 20 fev. 2023.
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